Abrir o leque: O caminho do TenChi Tessen e a expressão do verdadeiro self

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Ten: Céu; Chi: Terra; Tessen: Leque (símbolo do sopro).

Com os pés deslizando suavemente pelo tatame, os praticantes do TenChi Tessen se deslocam pelo espaço do Dojo. Seus trajes brancos de samurai contrastam com o vermelho do Tessen – o leque – que empunham na mão direita. O silêncio de seus movimentos, por vezes é quebrado por uma música suave ao fundo, que dá ritmo aos movimentos desenhados pelos praticantes; em outros momentos, o fundamento silencioso é quebrado pelo barulho iminente da abertura do leque.

Para o mero observador, essa arte do movimento poderá ser facilmente confundida com uma dança, mas, basta dispor da observação atenta para perceber que dança não é do que a arte se trata.

Desenvolvida no final da década de 70 pelo Me. Georges Stobbaerts, o TenChi Tessen se caracteriza por ser um DO (traduzido aqui como Caminho), ou seja, uma arte do movimento que tem como objetivo de sua prática o aperfeiçoamento físico, mental, moral e espiritual de seus praticantes (STOBBAERTS, 2002). O convite realizado a partir da proposta dessa arte é oferecer ao praticante a oportunidade de utilizar os movimentos como meios para a busca interior, busca que, consequentemente conduz a descoberta de si mesmo.

O acervo de movimentos que compõe a prática dessa arte é formado por elementos simbólicos bem estruturados (Citemos alguns: O infinito, O sol, A lua, Os oito ventos…), que se inspiram na natureza e na mitologia oriental. Na experiência prática, esses movimentos tem a função de nortear a reflexão da simbólica inserida, ou seja, a partir da percepção singular de cada movimento o praticante será capaz de imprimir sua versão pessoal do símbolo proposto. E, assim, poderá, “[…] à medida que evolua na disciplina, fazer uso dos movimentos para tecer relações entre seu corpo e sua dimensão interior, de modo a abrir-se para perceber seus pensamentos, emoções e sensações e encontrar-se com a intimidade de seu ser” (CAVALCANTI, 2020, p.11).

Tendo os princípios basilares descritos em seu nome, cujos caracteres traduzem os elementos representativos seguintes: Céu/Terra e Leque, a arte em destaque abre possibilidades de se fazer uso do corpo em uma concepção que indica a inter-relação entre o mesmo e a dimensão interior do sujeito. Sendo assim, na vivência da arte, a respiração e o leque tornam-se o elo de ligação que permite a jornada de aprofundamento do praticante em si mesmo, oferecendo, deste modo, vias de se familiarizar com os limites e capacidades da corporeidade. Nessa arte, o foco na harmonização de opostos permeia sua experiência e integra os elementos referenciados. Desse modo, seus movimentos apresentam formas e posturas corporais não usuais, que trabalham o corpo em sua integralidade, unindo o que se encontra em cima (os membros superiores, o Céu) e o que se encontra abaixo (os membros inferiores, a Terra).

Indispensável à prática dessa arte, o leque, já mencionado, figura como o instrumento que serve como a arma do guerreiro. Por não se tratar de uma luta, o TenChi Tessen possui movimentos de combate que foram rebatizados como “Temas” caracterizados por movimentos usualmente conhecidos como ataques e contra ataques, mas que nessa proposta são renomeados passando a se chamar: “perguntas e respostas”. Nestes, o objetivo de harmonizar os opostos é levado a novas consequências, pois, na execução de tais movimentos os parceiros precisarão tecer a simbologia contida na história do “Tema” e construir a harmonia entre seus movimentos.

Na realização desses movimentos não cabem ideias como ganhar ou perder, visto que, quem inicia o movimento (quem pergunta), no instante seguinte trocará de posição e passará a executar a resposta. A batalha presente nas artes as quais essa modalidade se inspira, aqui se apresenta como uma batalha interior, um caminho (DO) de busca na mais íntima nuance do ser. E esse caminho não estaria completo sem que se fosse oferecido ao sujeito-praticante a possibilidade de se relacionar com os outros e com o seu ambiente.

Em sua caminhada nessa disciplina, o praticante aprenderá as formas de cada movimento e desenhará no tatame os símbolos contidos em cada um deles; seja individualmente ou em um “Tema”, o universo se constrói a partir da história de cada movimento e descortina novas formas de percepção.

Ao conceber o corpo humano como um corpo que está vivo, compreendido como não dissociado da mente – ou espírito, o TenChi Tessen oportuniza o diálogo entre o que se encontra dentro e fora dos limites corporais do praticante, convidando-o a pesquisa interior, iniciada a partir da sua jornada em cada um dos movimentos, que se realiza na intimidade do silêncio. Proposto como um dos fundamentos da prática do TenChi Tessen, o silêncio aqui é o silêncio da meditação, o fundamento que abre para a investigação em seu ser, seus limites físicos, e também, psicológicos, dos medos e anseios em relação a cada novo passo, a cada novo movimento, porém, esse silêncio não é indicador de isolamento, pois, como foi apresentado, o praticante não está sozinho no Dojo, sua presença é sentida e percebida pelos demais praticantes, que poderão se unir e formar movimentos que se interligam e criam novas histórias.

E é justamente a capacidade de estar presente no instante e no movimento que o praticante poderá se abrir para o contato com o ambiente a seu redor, para a interação com os demais praticantes, o que o move para o encontro interior, a descoberta de si mesmo.

Mas, afinal, de que se trata a dimensão interior que permeia os princípios dessa arte?

Segundo o pensamento de Donald Winnicott, psicanalista inglês que se dedicou ao estudo e atendimento de pacientes com adoecimentos psíquicos desafiadores – como os “casos limite”, psicóticos e crianças com graves sofrimentos emocionais – o si mesmo, ou self (em sua linguagem) se caracteriza por ser o núcleo pessoal do sujeito, ou seja, o centro no qual se integram suas experiências. Estas se iniciam a partir das sensações e percepções corporais do bebê, e se desdobram na constituição das mais sutis dimensões da vida. Em sua proposta clínica e teórica, o desenvolvimento do self passa a ser um indicador da saúde, visto que, sentir a realidade das experiências aponta para a conquista da sensação pessoal de ser um sujeito total, um individuo autônomo e espontâneo, capaz de se relacionar com os outros sujeitos e objetos do mundo exterior, e viver de modo saudável.

Esse sujeito, então, seria uma pessoa que se reconhece na totalidade de sua experiência, na realidade material de seu corpo, e na realidade de suas vivências internas ou externas. Essa pessoa, que conseguiu se desenvolver de modo saudável, não tem dúvidas de seu ser, e é capaz de se relacionar e interagir com o ambiente de forma criativa, tecendo e enriquecendo suas experiências a partir do uso da criatividade. Com isso, essa pessoa poderá viver e aprender satisfatoriamente com o estar no mundo de cada dia.

Falar de criatividade, no pensamento desse autor, significa falar de um potencial humano inato à espécie, uma forma de situar-se e mover-se no mundo que singulariza a existência e que está presente desde o início da constituição subjetiva, assinalando o estilo próprio do bebê no mundo e nos caminhos de sua vida. Para Winnicott (1990), criamos o mundo à medida em que criamos a nos mesmos; criatividade trata-se, pois, de um processo em constante transformação e que se desdobra desde o desenvolver de uma realidade subjetiva (um mundo interno e pessoal) para as diversas expressões culturais: como os jogos, as brincadeiras e as artes. A possibilidade de ser criativo marca no humano sua capacidade de viver em três realidades existentes e inter-relacionáveis; a saber: a realidade interna, a externa e a realidade transicional.

Essa terceira realidade indica a emergência de um self integrado e é a marca da maturidade emocional daquele sujeito. Ela se apresenta sob as diversas criações culturais humanas e serve a função de descanso diante das durezas da vida. A indicação da maturidade emocional, então, se caracteriza pelo uso dessa realidade como uma ponte entre aquele mundo que pertence às fantasias e desejos internos e o mundo real, mundo que independe das vontades e intenções dos sujeitos. Saber que a vida não se amolda a seus caprichos, e ainda assim, conseguir encontrar cor na ação de viver, fazendo dessa uma jornada que vale a pena, é fundamentalmente uma característica daqueles que conseguiram a maturidade de modo saudável.

As descobertas de Winnicott culminam na existência de psiquismos falsos (os chamados “falso self”), que estão cada vez mais em cena na realidade dos consultórios, em decorrência das complexidades da sociedade e das vinculações afetivas precárias, sobretudo nos estágios iniciais da vida; encontramos sujeitos que adoecem de uma maneira peculiar, “escondendo do mundo” o seu ser e tendo o núcleo de sua existência fortemente protegido de quaisquer ameaças exteriores por uma organização defensiva que retira deles sua espontaneidade e, consequentemente, a liberdade de agir sobre o mundo de forma criativa. Na experiência clínica, esses sujeitos adoecem em seu ser e se comportam de formas estereotipadas, que evidenciam a rigidez e dificuldades emocionais de sua forma de existir.

Levando em consideração que o pensamento de Winnicott está em acordo com o que foi apresentado acerca da concepção de corpo no TenChi Tessen, esse autor assinala a importância da corporeidade para a constituição do verdadeiro self. É a partir do corpo, e do estímulo a capacidade de tradução das sensações corporais, que o sujeito poderá se perceber melhor e se direcionar para modos de vida mais flexíveis. Podemos pensar, a partir daí, que a prática do TenChi Tessen, com as suas nuances e desafios próprios, viabiliza meios, diferentes daqueles encontrados na clínica, para realizar essas conquistas.

O TenChi Tessen estaria inserido dentro das construções culturais, sendo, deste modo, uma arte localizada na realidade transicional e ofertando ao praticante as possibilidades acima citadas. Sua prática aponta para novos caminhos de investigação do sujeito acerca das suas dificuldades, também emocionais, e descortinando o seu ser a cada novo movimento.

Assim, ao abrir o leque na aula, sentindo seus pés sobre o tatame e entrando em contato com o universo de símbolos de cada movimento, o praticante vai tecendo formas interpretativas e dando cor, a cada um dos movimentos. Nessa jornada – que não será fácil, pois é preciso o comprometimento de um verdadeiro samurai, ele poderá dispor de momentos de reflexão sobre as problemáticas de sua vida.

E assim, entre uma abertura e outra, seu self se abrirá para mover-ser no mundo.

Referências:

CAVALCANTI, Amanda Pereira. Percorrendo o caminho do TenChi Tessen a partir da teoria psicanalítica: o self, o movimento e a criatividade. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, Mestrado em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco. Recife, 136f, 2020.

STOBBAERTS, Georges. Tenchi Tessen: arte e movimento. Lisboa; Tenchi International, 2002.

WINNICOTT, Donald Woods. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

NOTAS:

Dojo: Local de prática de artes maciais.

Foto: Marcely Santos (@marcelysantosphotography)

Colunista do Mês: Amanda Cavalcanti – Psicóloga Clínica – CRP 02/18.103

Instagram: @amandacavalcanti_23

1 Comment

  1. Cursos Online disse:

    Aqui é a Fernanda Lima , gostei muito do seu artigo tem
    muito conteúdo de valor parabéns nota 10 gostei muito.

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